sábado, 19 de fevereiro de 2011

Propaganda sofismática

Em tempos de redes sociais, sustentabilidade e empresas envergonhadas em falar que gostam de ganhar dinheiro, não poderia ser diferente. A propaganda, outrora uma atividade onde a incorreção política, a piada impertinente e marcante e a ousadia construiam marcas, agora vem se parecendo mais cada vez mais com uma confraria de carolas, bons moços e puritanos.

A última moda é a propaganda sofismática, aquela que apregoa belas lições de moral, entoando sofismas que mostrem marcas genuinamente interessadas em assumir uma nova postura ética, em contraponto a posturas "antigas". Algo como demonstrar marcas "desinteressadas", altruístas mesmo.

E assim, salvo um comercial de Havaianas aqui, um filminho de Posto Ipiranga acolá (como aquele em que o frentista tenta ler as mãos da cliente) ou uma irreverência da Skol acolá, vamos nos deparando com um mundo lindo, limpinho, de mãos dadas, cantando "Imagine all the people, sharing all the world, iu-hu..." (nada contra a música, que é ótima, mas contra a demagogia).

Dois exemplos dessa safra, digamos, angelical (vejam abaixo os comerciais em sequência), saídas da mesma forma são a campanha "Vamos fazer juntos" do Santander (que procura suavizar as arestas da incorporação de um banco de imagem razoavelmente construída sobre princípios verdadeiros - Real - por outro rigorosamente predador - o Santander) e a campanha "Mude a direção", recém-lançada pela Renault do Brasil, para mostrar como a montadora faz carros pensando nas pessoas.



O Santander e seu "Vamos fazer juntos?




A Renault pedindo: "Mude a direção".

Estou estupefato! Finalmente, após 50 anos da histórica campanha "Think small", criada pela lendária DDB para o simpatico Fusca (ou Beetle, nos EUA), que deixou de mostrar carros como objetos de metal e passou a mostrar como o Fusca foi feito para as pessoas, outra marca resolve contar essa história...
O engraçado é que os comerciais do Santander e da Renault têm um ritmo idêntico, cenas com crianças, casais, trabalho edificante, locutor exortando valores para mostrar marcas "comprometidas" com o bem-estar. A diferença? Além da óbvia, de um filme falar de banco e outro falar de carro, o sofisma que encerra a "mensagem". No filme do Santander: "Nós queremos ser um banco indispensável para um mundo que não precisa de mais um banco. Vamos fazer juntos?". No filme da Renault: "Num mundo em que as pessoas gostam de carro, não é bom saber que alguém faz carros que gostam de pessoas? Renault. Mude a direção."

A diferença de "Vamos fazer juntos?" para "Mude a direção"? Palavras apenas. O conceito é o mesmo. Mudança de atitude, princípios, um "novo olhar" para o mundo, sensibilidade.

Se formos observar a letra fria do posicionamento, o trabalho de ambas as marcas é válido, claramente. Mas até onde é sustentável seguir um caminho tão anódino, conformista, repleto de platitudes para projetar marcas? Obviamente que a comunicação de bancos obedece a uma série de regras, guias e diretrizes que impedem mensagens com humor mais iconoclasta. A pasteurização impera. Bancos são "familiares", vendem a "colaboração" para realização de sonhos enquanto exibem taxas de juros estelares no cheque especial e no crediário. Ainda assim, essa necessidade de se mostrar "ético, sustentável, comprometido", pode simplesmente resvalar para a demagogia pura e simples. E quando montadoras de automóveis resolvem também reafirmar seu "compromisso" com as pessoas, deixando os carros em segundo plano, deixando justamente de enfatizar o que cria emoções e vínculos nas pessoas em prol de um sofisma, a propaganda perde função. O valor prevalece sobre a marca.

Em resumo, no caso do Santander, o sofisma até faz sentido e realmente ajudou a construir a ponte entre o antigo Real e o novo banco, ainda que resvalando no populismo fácil. No caso da Renault, o sofisma tornou-se jogo de palavras, artifício vazio embalando uma marca ainda à procura de uma... direção no mercado brasileiro.

Finalmente, o uso desses sofismas para mostrar marcas dentro um involucro "moderno" é quase sempre, apenas um tiro no pé. Na hora de escrutinar números de balanço, market share, rentabilidade e EBITDA, a maior parte dessas "mensagens" não para em pé. Faltam-lhes a alma verdadeira, a tarefa de marca ser cumprida, algo que seja realmente verdadeiro, embutido na cultura da corporação, menos calcado sobre a filosofia de como as marcas devem se portar diante do mundo e mais sobre como elas, marcas, devem se portar diante de si mesmas.

Menos filosofia, pois. E mais autenticidade, prima-irmã da relevância.

Fonte: Propaganda instável

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